31 janeiro 2008

Artigo da Visão

CRIANCINHAS

A criancinha quer Playstation. A gente dá.

A criancinha quer estrangular o gato. A gente deixa.

A criancinha berra porque não quer comer a sopa. A gente elimina-a da ementa
e acaba tudo em festim de chocolate.

A criancinha quer bife e batatas fritas. Hambúrgueres muitos. Pizzas, umas
tantas. Coca-Colas, às litradas. A gente olha para o lado e ela incha.

A criancinha quer camisola adidas e ténis nike. A gente dá porque a
criancinha tem tanto direito como os colegas da escola e é perigoso ser
diferente.

A criancinha quer ficar a ver televisão até tarde. A gente senta-a ao nosso
lado no sofá e passa-lhe o comando.

A criancinha desata num berreiro no restaurante. A gente faz de conta e o
berreiro continua.

Entretanto, a criancinha cresce. Faz-se projecto de homem ou mulher.

Desperta.

É então que a criancinha, já mais crescida, começa a pedir mesada, semanada,
diária. E gasta metade do orçamento familiar em saídas, roupa da moda,
jantares e bares.

A criancinha já estuda. Às vezes passa de ano, outras nem por isso.

Mas não se pode pressioná-la porque ela já tem uma vida stressante, de
convívio em convívio e de noitada em noitada.

A criancinha cresce a ver Morangos com Açúcar, cheia de pinta e tal, e
torna-se mais exigente com os papás. Agora, já não lhe basta que eles
estejam por perto. Convém que se comecem a chegar à frente na mota, no popó
e numas férias à maneira.

A criancinha, entregue aos seus desejos e sem referências, inicia o processo
de independência meramente informal. A rebeldia é de trazer por casa.
Responde torto aos papás, põe a avó em sentido, suja e não lava, come e não
limpa, desarruma e não arruma, as tarefas domésticas são «uma seca».

Um dia, na escola, o professor dá-lhe um berro, tenta em cinco minutos pôr
nos eixos a criancinha que os papás abandonaram à sua sorte, mimo e
umbiguismo. A criancinha, já crescidinha, fica traumatizada. Sente-se vítima
de violência verbal e etc e tal. Em casa, faz queixinhas, lamenta-se, chora.
Os papás, arrepiados com a violência sobre as criancinhas de que a televisão
fala e na dúvida entre a conta de um eventual psiquiatra e o derreter do
ordenado em folias de hipermercado, correm para a escola e espetam duas
bofetadas bem dadas no professor «que não tem nada que se armar em paizinho,
pois quem sabe do meu filho sou eu».

A criancinha cresce. Cresce e cresce. Aos 30 anos, ainda será criancinha,
continuará a viver na casa dos papás, a levar a gorda fatia do salário
deles. Provavelmente, não terá um emprego. «Mas ao menos não anda para aí
fazer porcarias».

Não é este um fiel retrato da realidade dos bairros sociais, das escolas
em zonas problemáticas, das famílias no fio da navalha? Pois não, bem sei.
Estou apenas a antecipar-me. Um dia destes, vão ser os paizinhos a ir parar
ao hospital com um pontapé e

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